Ensaio

Para lá das Touradas e Hóquei no Gelo

Para lá das Touradas e Hóquei no Gelo
– Uma Arquitetura da Identidade Multicultural –

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
[…]
Homens encarcerados abrindo-se com facas
Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são como sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

As minhas primeiras memórias, os meus primeiros aromas e sons são de Angola. Um mundo colorido pela sua geografia de calor e perfumado pelas suas culturas, espiritualidades e musicalidades. A minha experiência do continente Africano foi efémera, uma vez que um punhado de anos mais tarde, os meus pais regressaram à sua terra natal em Portugal, onde fui criado no vale do Rio Caima, circundado por socalcos de vinho verde e canas de milho no âmago da Beira Litoral.

De mochila aos ombros e à boleia, comecei a viajar aos quatorze anos, primeiro em Portugal e posteriormente pela Europa e Ásia. Mais tarde, com os meus primeiros passos na vida adulta, viajei e trabalhei pelo mundo por quatro anos, tendo ao longo desses caminhos também vivido e trabalhado no Canadá, Inglaterra e Austrália. Depois de visitar fragmentos do nosso vasto planeta e cruzado várias longitudes e latitudes, elegi o Canadá como o meu lugar desejado para soltar as minhas novas raízes. Escolhi viver nesse país, o Canadá, porque estimo uma sociedade onde a diversidade cultural é incentivada e protegida.

Presumo que tenha lutado com desafios semelhantes aos enfrentados por todos os imigrantes em qualquer lugar do planeta. Questões de identidade, pertença e alienação, de integração, assimilação, e sim, também de resistência ao meu país de acolhimento. A príncipio vivi num vai-vem interior entre o Canadá e Portugal, sentindo-me nem Português nem Canadiano, e ansiando sempre por tudo de que me apercebia ausente em cada uma das culturas. Nesse meu estado inicial de separação e ansiedade, sentia-me atormentado e confuso, rasgado de ambas as culturas. Para agravar essa experiência, as pessoas no Canadá interagiam comigo como se eu fosse um alienígena, a minha voz como é óbvio revelava o forte sotaque de um recém-chegado.

Com o correr do tempo, percebi que me lesava a mim próprio ao aceitar as percepções alheias sobre mim como se fossem minhas. Percebi que eu era obviamente quem se encontrava incerto sobre a minha identidade ao aceitar a visão alheia sobre quem deveria ser. Comecei então a encontrar serenidade interna e equilíbrio quando recusei requisitos reais ou imaginários do Estado, da comunidade e das culturas em ambos os lados do Atlântico, quando recusei aceitar as suas expectativas e avaliações de pertença como se fossem as minhas. Agora sei que sou o única pessoa que pode mudar o que sinto sobre quem sou. Essa metamorfose iniciou-se quando aceitei as diferenças e contradições dentro de mim. Agora sinto-me 100% Português e 100% Canadiano, e ninguém me pode alterar esse sentimento. De seguida, ler-vos-ei um poema que ilustrou a minha chegada a essa nova percepção de mim mesmo.

*
vive
entre portugal e canadá

touradas e hóquei no gelo
bacalhau e salmão

o que se traduz por um viver
itinerante e impertinente

vive
naquela nuvem de alta ou baixa pressão
naquele espaço impermanente
sem raízes e ervas daninhas

formas, identidades e pensamentos
reinventam-se com os ventos

materializam-se e evaporam-se
nas rugas quer do atlântico quer do pacífico

vive
nessa nuvem sem bandeiras
onde o som distante dos hinos
se esvanesse no sussurro da história

e as trovoadas emudecem os canhões

A diversidade, tão importante na construção de uma identidade individual como na sociedade em geral, implica uma visão do multiculturalismo para além de ilhas culturais isoladas que pontilham um país. Proponho um multiculturalismo enraizado no indivíduo e não no grupo, um mosaico cultural pessoal permitindo que tu e eu nos entrelacemos e pertençamos a um ramo complexo de heranças culturais, de línguas e interações.

No percurso da minha vida tenho-me envolvido num trabalho consciente de questionar os valores herdados do meu património cultural, e assim, não simplesmente engoli-los através do hábito da repetição cega. Desejo que os meus valores, incluindo os meus valores culturais, reflitam as minhas escolhas conscientes … e em consciência. Este trabalho de filtrar e avaliar a atmosfera cultural em que se respira, e de estabelecer escolhas conscientes, decorre ao longo de toda uma vida e requer resistência e perseverança. Ao mesmo tempo, a recompensa será distinta. A cultura não nasce da conceção imaculada ou é geneticamente adquirida, reflete sim o tempo e o esforço investidos em cultivar a sua prática. Identidade desdobra-se em ação. Como opto por me identificar como sendo 100% Canadiano e 100% Português, necessito apenas de compartilhar algumas dessas características para sentir a minha plena adesão. Sou um Português atípico e um Canadiano atípico. Todos somos seres individuais. Sou um Português que decidiu desde 1992 não comer carne, gosto de azeitonas ao pequeno-almoço, e visto-me de todas as cores do arco-íris. Sou também um Canadiano sui generis, um que não pede desculpas quando, num autocarro repleto, a pessoa ao meu lado me acabou de calcar o pé. Não jogo à loteria do 6/49. Não aprecio hóquei no gelo e a violência intrínseca a esse jogo. É a minha participação a nível político, social e comunitário que me insere cívica e culturalmente tanto nas sociedades Canadiana como Portuguesa. Sou um cidadão envolvido e criativo em ambas as culturas. Não necessito de encaixar como uma luva para me sentir ligado e de descobrir um sentido de pertença a qualquer uma das culturas.

É irónico que eu não me tenha identificado com a cultura que me rodeava, enquanto crescia em Portugal. Eu não encontrava expressão e ligação aos valores da cultura predominante, e vivendo num meio quase-rural, os modelos de cultura alternativa à minha disposição eram inexistentes. Também cresci numa época onde as touradas eram transmitidas semanalmente na TV Portuguesa durante a temporada de Verão. No entanto, nunca compartilhei o interesse ou a excitação expressa pela família e amigos, enquanto observavam um animal encurralado numa arena sujeito a tortura e sofrimento para o humano prazer de entretenimento vespertino. A minha sensibilidade não encontrava um eco de mim mesmo em tal prática cultural, nem tão pouco em muitas outras práticas e valores que promoviam linhas estreitas de identificação, supostamente comuns a todos os cidadãos e, sem dúvida, compartilhada. Foi só depois de ter partido de Portugal, viajado e residido noutras partes do mundo que encontrei ligação com a minha identidade cultural como Português. Uma identidade que eu senti não tinha que prescrever a clichés de identidade ou teria de comprometer o meu sentido fundamental da diferença. Neste mesmo sentido, não vejo o meu Canadianismo refletido nos traços gerais dessa nação. Adoro patinar nos lagos gelados das Montanhas Rochosas, deslizando sob o céu da estrela do norte, adoro os doces de Nanaimo, o xarope de Ácer nas panquecas, e uma vez mais repito, que não sou um fã de hóquei no gelo. Reconheço que a escolha da minha existência reflete e requer um conforto pessoal de residir nas margens de qualquer sociedade. Eu gosto das margens, nas margens encontro o espaço para crescer.

(… continua …)

extrato e tradução da versão inglesa publicada no livro

Paperback: 207 pages / Publisher: Boavista Press / USA (2015) /Language: English / ISBN-10: 9960511-3-2 /ISBN-13: 978-0-9960511-3-2

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Livro disponível em inglês nas livrarias  amazon.ca  amazon.com amazon.uk

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