A Música da Tradução
A Música da Tradução
Cada texto em particular exige que o tradutor sintonize as suas necessidades. As necessidades são variadas e complexas em qualquer transposição de uma língua, de uma cultura para outra. Aqui irei concentrar-me na análise das necessidades musicais de um texto específico. Do poético ao técnico, e em graus variáveis, cada texto vai exigir escalas variadas de atenção para facilitar o fluxo da linguagem. Para conseguir isso, um tradutor deve ser um ouvinte atento e também capaz de escutar a música nas palavras. O que diz o texto e o que perpassa do texto? Será que a ordem de notas chega a todos os ouvidos em todas as culturas? A tradução preserva, transforma e inventa. As escolhas são feitas. As reverberações subtis exigem orelhas de igual capacidade face àquelas versadas na tradução das canções das árvores.
Como escritor e poeta afasto-me da opinião segundo a qual os textos superiores apresentam um ritmo e musicalidade próprios e coerentes, ingredientes que reforçam a excelência particular da sua semântica. Um tradutor eficaz irá abraçar um ritmo paralelo e lúcido na língua de chegada. Nas minhas traduções, não tive de sacrificar significado num texto de prosa para preservar a musicalidade subjacente.
Na tradução, avalio primeiro a essência do trabalho para estabelecer se a música – a partitura – está no cerne do texto, como no caso da poesia da língua ou rima. Às vezes, a necessidade primária do poema fala pela escolha óbvia que devo destacar na tradução. Em outras ocasiões, quando a necessidade de significado semântico e música estão em sintonia e são essenciais para a experiência, tal como num soneto ou outro tipo de rima, optei por destacar o significado. No caso de poesia da linguagem, a música prevalece. Vejo dois níveis distintos de música num texto. O mais visível é exemplificado pela rima e pode ser chamado a batida do poema, enquanto um secundário, subtil e conduzido pela pontuação, irei chamar a cadência de um poema. No exemplo a seguir, a aliteração de sons sibilantes é a essência do poema.
MUSIC III
for Adriana
Rita Taborda Duarte
tradução de Paulo da Costa
Simply
scholar
from soporiferous sound
to sonorous silence
Also
so,
sharply sage
is the solar
clef
MÚSICA III
À Adriana
Rita Taborda Duarte
Sapientemente
sempre
de soporífero som
a sonoríssimo silêncio.
Assim
também,
sustenidamente sábia
é a clave
solar
Na tradução, valorizo a transposição da amplitude junto com a semântica de um texto, a palavra, a cadência, o andamento. Vejo mérito em não remodelar a música de um texto original para o ritmo de uma língua de chegada. Em vez disso, esforço-me por permanecer fiel à música distinta e sintaxe da obra original. Não encurto a duração das orações da língua original, porque o discurso em inglês favorece orações significativamente mais curtas do que o português, com isto quero dizer que não mudo a pontuação de um texto. Tanto a amputação como a prótese mudaria a amplitude da oração, a amplitude do livro e, como consequência, a musicalidade do texto. Sou um leitor que aprecia a estranheza veiculada no som e na estrutura de um texto estrangeiro. A estranheza que se mantém fiel ao tempero e sabor que esperaria de uma visão distinta do mundo oriunda de outra linguagem, voz e cultura, e para ilustrar isso incluí um poema do poeta português Nuno Júdice.
IMAGEM
Nuno Júdice
O homem que falava sozinho na estação central de munique
que Língua falava? Que língua falam os que se perdem assim, nos
corredores das estações de comboio, à noite, quando já nenhum
quiosque vende jornais nem cafés? O homem de
munique não me pediu nada, nem tinha ar de
quem precisasse de alguma coisa, isto é, tinha aquele ar
de quem chegou ao último estado
que é o de quem não precisa nem de si próprio. No entanto,
falou-me: numa língua sem correspondência com linguagem
alguma de entre as possíveis de exprimirem emoção
ou sentimento, limitando-se a uma sequência de sons cuja lógica
a noite contrariava. Perguntar-me-ia se eu compreendia acaso
a sua língua? Ou queria dizer-me o seu nome e de onde vinha
– àquela hora em que não estava nenhum comboio
nem para chegar nem para partir? Se me dissesse isto,
ter-lhe-ia respondido que também eu não esperava ninguém,
nem me despedia de alguém, naquele canto de uma estação
alemã; mas poderia lembrar-lhe que há encontros que só dependem
do acaso, e que não precisam de uma combinação prévia
para se realizarem. – É então que os horóscopos adquirem sentido;
e a própria vida, para além deles, dá um sentido à solidão que empurra
alguém para uma estação deserta, à hora em que já não se compram
jornais nem se tomam cafés, restituindo um resto de alma ao corpo
ausente – o suficiente para que se estabeleça um diálogo, embora
ambos sejamos a sombra do outro. É que, a certas horas da noite,
ninguém pode garantir a sua própria realidade, nem quando outro,
como eu próprio, testemunhou toda a solidão do mundo
arrastada num deambular de frases sem sentido numa estação morta.
IMAGE
Nuno Júdice
tradução de Paulo da Costa
The man who talked to himself in munich’s central station
what language did he speak? What language speak those lost like that, on
platforms of train stations, at night, when no
kiosk sells newspapers or coffee? The munich
man asked me for nothing, he didn’t even look
as if he needed anything, meaning, he looked
like someone who had arrived at the last stage
the stage of someone who does not even need himself. Although,
he spoke to me: in a tongue not resembling a language
capable of expressing emotion
or feeling, limited to a sequence of sounds whose logic
the night contradicted. Was he asking me if by any chance I understood
his language? Or did he want to tell me his name and where he was from
– at such an hour when no train was
about to arrive or leave? If he had told me this,
I would have told him that I too was waiting for no one,
nor was I saying goodbye to someone, in that corner of a german
station, though I could remind him that some meetings depend only
on chance, not requiring a previous arrangement
to occur. That is when horoscopes acquire meaning,
and life itself, beyond them, lends meaning to the solitude that pushes
someone toward an empty station, at an hour when newspapers
are not bought or coffee drunk, restoring a touch of soul to the absent
body – enough to establish a dialogue, although
both are each other’s shadow. Since, at certain hours of the night,
no one can be certain of one’s own reality, not even when another,
like myself, witnessed all the loneliness in the world
dragged through senseless meandering sentences in a dead station.
(…)
excerto do ensaio ©paulodacosta tradução José Fernandes
excerto e versão portuguesa de um ensaio incluído no livro: Para lá das Touradas e do Hóquei no Gelo – A Arquitetura da Multi-Nacionalidade, Ensaios sobre cidadania, literatura e linguística, ( Beyond Bullfights and Ice Hockey 2015 )
Livro e ebook serão vendidos a partir de Abril de 2015 pelas Livrarias da Amazon nos EUA GB Espanha Alemanha