A Verde e Púrpura Pele do Mundo (conto)
Cara A, Monte das Lameiras, pátio
três semanas
A manhã desperta e suspira nos pulmões dos pássaros. Inauguro o dia nos degraus da entrada, roupão de banho vestido e a fazer bolas de sabão. A música dos pássaros começa a derreter o ténue véu de geada que encobre o chão.
Ligaste-me a noite passada para dizer que não me irias esperar ao aeroporto Pearson. Vais estar em Victoria a visitar a tua tia.
Neste canto da Europa o sol brilha por entre o azul de Inverno. Brilham as laranjas nas árvores e os kivis enrugam-se nas ramadas. Toda esta fruta não me seduz a ficar.
O melro foi transferido para uma gaiola mais ampla desde a minha última visita. Saltita de poleiro em poleiro e bate as asas freneticamente quando me aproximo da gaiola no meu pijama lilás.
Já alguma vez reparaste como os olhos seguem uma bola de sabão que ascende, a maior, a mais colorida, ignorando as outras bolas que se arrastam para o chão? Por vezes uma bola paira junto ao solo, muito depois das outras terem rebentado. A bola e o solo encontram-se frente a frente.
À medida que megulho e tiro o aro roxo do frasco de plástico, um simples murmúrio vindo da minha boca cria mundos perfeitamente redondos. É isso que representa a expansão do universo pelo Criador?
Beijos,
Shana
*
Minha querida, Monte das Lameiras, cemitério
uma semana e meia
Hoje não precisam de mim. Um vento intenso forma as bolas de sabão sempre que levanto o aro. Precipitam-se rapidamente para longe. Estou sentado na campa dos meus avós. Um buraco fechado; corpos de três gerações. As bolas colidem com as cruzes de mármore, atraídas pelos reflexos das pedras polidas. No Canadá, não tenho campas onde me sentar.
Telefonaste outra vez. Vais estar em Victoria porque te apaixonaste. Tencionas casar-te no mês que vem. Ele vai viver contigo… Não queres falar sobre o assunto…
Estranho ver-me reflectido na bola de sabão, viajar ao sabor do vento. Horrível ver-me desaparecer a meio voo com um estouro. Já alguma vez estiveste a olhar fixamente para uma bola de sabão sem te aperceberes que ela já rebentou? Viva apenas na memória. Desespero ao agitar o frasquinho de sabão. Soprando, soprando, quero encher o cemitério de bolas de sabão. Quero ver as bolas crescerem à medida que saem do aro, enchendo o ar. Enchendo o ar como uma corrente de lágrimas.
De vez em quando, as bolhas flutuam, acorrentadas. Cada uma mais pequena que a seguinte. Juntas encontram a terra. Parece tão reconfortante.
Compreendo a urgência. Passaste dos quarenta. Uma bola de sabão paira muito perto do arame farpado.
Beijos,
Shana
*
Minha amada, Monte das Lameiras, pátria
uma semana e um dia
Penso na minha mãe enquanto admiro uma bola de sabão que sobe rapidamente por cima do telhado, afastando-se. Espero que seja feliz. Gostava de conhecer o seu destino. Existe um abeto alto por detrás da casa. Um abeto com cinco mil agulhas. Gosto de imaginar a bola vagueante que inesperadamente traz um sorriso a um vizinho sentado a uma janela.
Agora a minha língua materna atraiçoa-me , uma ferramenta enferrujada para cavar as profundezas do terreno que piso. A minha velha língua perdeu a sua magia; já não transforma os meus pensamentos em palavras que outrora conheci. Pensamentos que irão florir e dar fruto plantado numa infância distante.
A minha pátria são todas as línguas que falo. As palavras abrem portas e convidam as pessoas a tocarem nas partes mais vivas e sensíveis do meu ego escondido. As palavras transportam-me pelas sombras, pelos cantos resolutos onde me deparo com o imprevisto, e decifro as formas indefinidas da sombra.
Falo no passado e imagino o futuro. Não estou aqui.
Beijos,
Shana
(…)
excerto do conto ©paulodacosta
do livro: A Verde e Púrpura Pele do Mundo, LPD 2014
Livro e ebook serão vendidos em Novembro de 2014 pelas Livrarias da Amazon nos EUA GB Espanha Alemanha