Contos

As Borboletas de Prudêncio Casmurro

Prudêncio Casmurro não era um homem qualquer. Enterrou os pais, sete mulheres e o último de vinte e dois filhos, revelando sempre pouca ânsia em partir deste mundo.

Testemunhou carros de bois a serem substituídos por tractores e tractores a serem substituídos por ceifeiras monstras. Do quarto, espreitava sobre o muro do quintal. Espreitava o mundo que rodopiava cada vez mais loucamente, o mundo que brilhava e rangia os dentes mais ferozmente, a imensa cintilação dificultando-lhe a diferenciação entre a noite e o dia. Com teimosia de burro prosseguia com a sua vida. Era como se fossem ventos passageiros a bater-lhe à janela e aos quais ele fechava as cortinas ao fim do dia.

Prudêncio acordava com os primeiros raios da manhã e encaminhava-se para a varanda a espreguiçar os braços quer à chuva ou ao sol que dominasse o dia. Cumprimentava um ou outro com o seu idêntico assobio e jovial exclamação, «Outro esplêndido dia no nosso vale!» De camisa de noite e touca, prosseguia de pés descalços para o quintal e colhia a fruta da época. Dióspiros pelo esfriar do Outono, cerejas pelo corar da primavera.

Prudêncio saboreava cada mordiscada e mastigava com lazer a fruta cultivada no solo aromático. Após cada dentada detinha-se, pensativo, venerando tudo que de visível e invisível lhe trouxera o sustento ao corpo. Pendia a cabeça, fazendo a vénia ao mundo, antes de prosseguir com o próximo pedaço de fruta.

Nada comia que não fosse amadurecido da terra do seu quintal, excepto no casamento de bisnetos, quando permitia no seu corpo maçãs e feijões de casta rara, cultivados por mãos de confiança.

Sentado na varanda de pedra, a mastigar o pequeno-almoço, Prudêncio escutava o canto dos melros e seguia o zunir das abelhas a labutar – bebendo do canteiro de camomila. Prudêncio não criava animais. Preferia seres fogosos, chegando ou partindo de vontade própria. Para atrair borboletas, plantou dente-de-leão e serralha num recanto do quintal. Escavou um charco onde rãs estabeleceram território e onde patos bravos regressavam, geração após geração, para fazer ninho. Prudêncio apreciava os momentos cândidos duma borboleta a pousar no peito, asas a abrir e a fechar em sintonia com o bater do coração ou de uma rã saltando do fundo dos degraus da varanda para o regaço.

Prudêncio não era um homem supersticioso mas tinha uma realidade neste mundo para o qual não evidenciava tolerância – relógios de caixa. Prudêncio nascera quando os relógios eram do tamanho de caixões, ao alto, em lugares de predominante exibição. Um pêndulo dourado dançava de lado para lado no ventre, a hipnotizar a aglomeração de vizinhos.

O pai de Prudêncio carregou às costas, para casa, a compra orgulhosa, não querendo ficar atrás de Ti Celestino que vivia ao fim da calçada. O pai colocou o relógio de caixa ao cimo das escadas e encostado à parede do quarto de Prudêncio. O sino estridente, assinalando cada hora, ecoava na cabeça de Prudêncio, estilhaçando-lhe os sonhos, arrepiando-lhe os ossos. Todas as noites, Prudêncio levantava-se do leito para silenciar o pêndulo. Mas pela manhã, o pai já tinha o pêndulo em sólido badalo.

Até que uma noite, Prudêncio atirou ao poço a chave de dar à corda. O pai, já perplexo pelas constantes manhãs caladas, e não encontrando a chave, convenceu-se que o relógio estava amaldiçoado. Atirou os braços para o ar, renunciando à chave maldita. O relógio descansou numa esquina solitária durante a mocidade do Prudêncio, emudecido a um minuto da meia-noite.

«Eu vou seguir os ritmos da natureza. Nenhuma estúpida invenção humana para medir o tempo me vai servir», jurou Prudêncio.

Prudêncio fora informado que com o passar das décadas, os relógios tinham encolhido a tal tamanho que uma pessoa os poderia passar por um buraco de agulha.

«Esses larápios do tempo propagam-se mais facilmente do que ratos e roubam o requeijão da nossa existência». Prudêncio teve um acesso de cólera quando soube que não existia objecto algum que não incorporasse um mostrador de hora, mês e ano, e que a maioria das pessoas acorrentavam os pulsos aos relógios. Prudêncio abanava a cabeça desaprovadoramente. Não compreendia como de livre vontade alguém se algemasse ao correr do tempo.

«Não seja teimoso pai», Gil, filho mais velho, troçara. «Mudança é a única constante humana. Adaptar-se à mudança é o nosso espírito de sobrevivência. Pergunte ao Darwin. Você segue o caminho dos dinossauros».

O filho de Prudêncio morreu nos seus trinta. Foi para a sepultura adornado com um aparato de apetrechos electrónicos, como se pertencesse a uma tribo exótica. Televisão, telefone, caneta-relógio, walkman. Gil fora seduzido por magias electrónicas. Aos Domingos, depois da pequenada se encontrar de regresso da sua obediente ida à missa – Prudêncio recusara-se a ir desde o dia em que o padre colocou um relógio de torre – Gil saltava para um autocarro rumo à cidade e deambulava as ruas, a ver montras de novidades electrónicas. Gil sonhava com as engenhocas que daria a si próprio no próximo aniversário e que esconderia na casa do vizinho. Nenhum mostrador de tempo era permitido para lá dos muros do pai.

Prudêncio recusava-se a comemorar os seus aniversários. «Se não sabes a tua idade o corpo nunca saberá quando chega a hora de partir. Vai andando às voltas com as estações».

Nenhum dos vinte e dois falecidos filhos ou dos treze bisnetos ainda vivos, o convencera a ir a festas de aniversário – deles ou de si próprio. «Um princípio é um princípio. Se não te fincas por um princípio – e por pessoas claro – pelo que se irá uma pessoa fincar?»

Os bisnetos especulavam que Prudêncio Casmurro andava pelo mundo à volta de dois ou três séculos. A barba cor-de-nabo dependurava-se até aos joelhos e o cabelo enrestiava-se até aos tornozelos como uma trança de alho. Rejeitava consultas médicas, recusava comerciantes desejosos de promover cremes faciais que asseguravam limpar os anos da cara ou as vitaminas que aumentavam o vigor do corpo. «Amanhar o quintal, ajoelhar-se às ervas daninhas, levantando e carregando com cestos de hortaliça, é o vigor que o corpo precisa».

Prudêncio Casmurro tornou-se numa atracção turística. «O homem mais velho do mundo mora aqui», um letreiro proclamava. Autocarros de turistas paravam-lhe ao portão, tiravam a fotografia obrigatória, do colorido e engraçado letreiro, «Jesus mora aqui», e «Víboras e Maçãs também», desaparecendo precipitadamente para a próxima escala na fábrica de papel. Os roteiros mais dispendiosos, de helicópteros, sobrevoavam o telhado de Prudêncio, esforçando-se por fotografar a sua ilusória presença.

Tão previsivelmente como os ritmos da natureza, Prudêncio contava com as épocas de indignação da aldeia, agora alastrada a metrópole. Boatos dos seus pactos com o diabo abundavam e tentavam explicar a sua longevidade. Com o passar do tempo, e com o isolamento, Prudêncio não encontrava alma com quem partilhar as suas memórias. Amigos de outrora já haviam partido, deixando-o com o peso das histórias, da memória. Nas noites quentes de Verão, agarrava a concertina e cantava os enredos da vida para o coro de rãs que o acompanhava debaixo das ramadas da vinha. Prudêncio tinha saudades dos avós sentados no tear, a tecer enredos de um tempo ido, tempos cheios de mistérios e interrogações.

Passara-se uma eternidade desde que Prudêncio casara pela última vez. Sentia-se mais e mais alienado do mundo e via menos e menos os seus envelhecidos bisnetos, todos demasiado enfraquecidos para o visitar de seu próprio pé, a residir em arranha-céus onde a ninguém era permitido sair sem acompanhamento ou autorização.

O quintal continuava a ser a sua paixão. O quintal que o arreigava ao mundo, carecendo ainda das suas mãos, do seu contacto, para perdurar.

Prudêncio acabou por reconhecer que não poderia evitar a flecha do tempo, o movimento implacável das vidas e dos seus desejos. O rugir urbano, penetrava-o mais profundamente que um uivo de monstros loucos. A cidade agigantava-se. Prédios de vidro trepavam ao céu e perscrutavam Prudêncio, acercando-se como predadores. Prudêncio não se sentia à vontade, ao sol, a esfregar as costas – no morangal, de molho na sua selha de cedro – mordiscando a doce fruta. A fatia azul do céu encolhia-se até que já não era azul, mas um cinzento perpétuo. Cada vez menos pássaros regressavam com a Primavera para assobiar as suas árias na frescura do pomar. O fedor da fábrica de papel saltava o muro e as delicadas cerejeiras cessaram de florir. As ameixas douradas, a embelezar a coroa da árvore, mostravam queimaduras inexplicáveis na delicada pele, algumas cicatrizes enterravam-se até ao caroço. A água do poço sabia mal. Um tossir malévolo sediou-se no peito.

excerto   ©1996paulo da costa                       ©paulodacosta

de:  O Perfume da Mentira,  LPD 2012  – paulo da costa (Autor)

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O Perfume da Mentira é um livro de catorze contos interligados que se desenrolam em duas aldeias carismáticas de Portugal e podendo mesmo ser lido como um romance em retalhos.

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