Contos

  • A Verde e Púrpura - Contos,  Blog,  Contos

    A Verde e Púrpura Pele do Mundo (conto)

    Cara A,                                                           Monte das Lameiras, pátio três semanas   A manhã desperta e suspira nos pulmões dos pássaros. Inauguro o dia nos degraus da entrada, roupão de banho vestido e a fazer bolas de sabão. A música dos pássaros começa a derreter o ténue véu de geada que encobre o chão. Ligaste-me a noite passada para dizer que não me irias esperar ao aeroporto Pearson. Vais estar em Victoria a visitar a tua tia.   Neste canto da Europa o sol brilha por entre o azul de Inverno. Brilham as laranjas nas árvores e os kivis enrugam-se nas ramadas. Toda esta fruta não me seduz a ficar. O melro foi…

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    As Asas da História

      Oliveiras e sobreiros polvilharão a paisagem abrasadora. Não refrescaremos esta descrição com o vento. Pelo contrário, avivaremos o ardor do sol, tingindo a paisagem de carmesim, enrubescendo a linha do horizonte como o das férias sulistas. A forragem, atrofiada, descansará tranquila, enquanto nós instigaremos um corvo a crocitar e a estilhaçar o silêncio. Colocaremos três pastorinhos deitados à sombra de uma azinheira, chamar-lhes-emos Lúcia, Jacinta e Francisco. Para obedecer a expectativas bucólicas, assim como de coerência literária, iremos rodeá-los com um rebanho de ovelhas. As ovelhas são secundárias à história mas talvez se convertam num mote de menor repetição simbólica. Desejamos subtileza de caracterização. Descrevê-los-emos em pobreza, compar-tilhando azeitonas…

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    Pedras Parideiras

      Francisco guiava a aldeia que o seguia por campos de milho, montes, atravessando ribeiros, para indicar ao povo estupefacto o berço das pedras parideiras. Os corpulentos pedregulhos, descobertos e batizados por Francisco com o nome de pedras-mãe, encobriam a crista do cume e ao longe pareciam indistinguíveis de qualquer outro campo de pedras no cabeço da Serra da Senhora da Freita. Nesse Domingo, a excitação era tal que a missa fora cantada pelo caminho enquanto marchavam sob o nascer do sol raiante. Um rosário de povo seguira Francisco lembrando-lhe o seu próprio rebanho de cabras, não fora as preces que ecoavam das escarpas. Preces mais estridentes que os costumeiros…

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    Uma Aragem de Memória

      Florindo Ramos adorava árvores, e sempre adorara, desde que num inverno turbulento, quando rapaz ágil, saltando de pedra em pedra, procurando musgo pela orla do rio Caima, escorregara, caindo na rodopiante corrente, «Eu cá teria afogado», contava Florindo às crianças que o rodeavam e atentamente escutavam as suas histórias após o fim das aulas. Com ternura, Florindo acariciou as verdejantes e lustrosas folhas dos rebentos que cresciam sob a copa da mãe ginkgo. Florindo continuou, dirigindo-se às crianças e aos rebentos, «Remei com os braços, mas sem sorte. Afundei num fechar de olhos. Foi então que a minha ginkgo se arqueou, quase pulando da terra», indicava ele com um…

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    Um Punhado de Ilusões,

      Eu, o diabo? Nunca. O diabo não se atrevia a dedicar-se a estas canseiras, estes riscos. Eu gasto as pontas dos dedos até ao giz do osso só para agarrar clientela. Ah… não como a vida de padre, feita à medida, simplesmente a deslizar para dentro de uma batina e a esborrifar umas lufadas de incenso perfumado no altar, e de imediato as gentes correm das suas colmeias para os bancos da igreja. Padres nem se preocupam em engendrar novos milagres de valia,  amparam-se em milagres tecidos há tanto tempo que já ninguém os põem em questão. Qual é a alma viva que atesta esses milagres de seus próprios…

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    O Perfume da Mentira

    Nunca tivemos má fé contra a Camila Penca. Simplesmente rezámos pelo regresso do sossego e da harmonia à aldeia e, graças a Deus, as nossas preces foram ouvidas. Camila nasceu de boa gente, na nossa respeitada aldeia, anichada entre os dentes aguçados do penhasco da Baía da Boca do Inferno. Uma aldeia ainda de pé, com orgulho e oposição, após séculos de ira Atlântica. Camila cresceu no seu próprio mundo, subia e descia o escarpado colecionando penas de gaivota, chapinhava nos lagos de maré baixa, depenando os ouriços-do-mar, bem-me-quer, mal-me-quer, depois com as primeiras ondas da puberdade, ama-me, não me ama. Alguns dizem que Camila sempre mostrara inclinação para criar…

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    As Borboletas de Prudêncio Casmurro

    Prudêncio Casmurro não era um homem qualquer. Enterrou os pais, sete mulheres e o último de vinte e dois filhos, revelando sempre pouca ânsia em partir deste mundo. Testemunhou carros de bois a serem substituídos por tractores e tractores a serem substituídos por ceifeiras monstras. Do quarto, espreitava sobre o muro do quintal. Espreitava o mundo que rodopiava cada vez mais loucamente, o mundo que brilhava e rangia os dentes mais ferozmente, a imensa cintilação dificultando-lhe a diferenciação entre a noite e o dia. Com teimosia de burro prosseguia com a sua vida. Era como se fossem ventos passageiros a bater-lhe à janela e aos quais ele fechava as cortinas…

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    Rosas, Lírios e Crisântemos

    paulo da costa Num fim de tarde arruivado, caminhando pelo olival, Manuel Sabetudo anteviu a sua morte e o corpo estremeceu como uma oliveira varejada, derramando a última azeitona. Manuel perdeu o dom da palavra, sobrevivendo esse verão fatídico, acocorado na margem do rio Caima, seguindo as águas cristalinas a deambular pelo verdejante vale até desaparecerem de vista. Manuel Sabetudo revivia o acidente na sua mente, ajoelhando-se ao corpo, fechando-lhe os olhos, seguindo o cortejo até casa onde depositaram o cadáver, depois ajudando-os a despir as roupas rasgadas e a banhar-se, corando, pois era um homem pudico. No banho, os dedos do Manuel contornavam pisaduras do tamanho de pântanos que…