Esquina Do Mundo
– entrevista com Luís Filipe Ferreira
Entrevista publicada no primeiro numero da Revista Literária Esquina do Mundo do Centro de Estudos Ferreira de Castro.
O primeiro livro aos 37 anos. Quais as razões desta demora?
O fruto maduro é mais saboroso.
“The Scent of a Lie” foi muito bem recebido pelo mundo literário canadiano e não só. Fale-nos um pouco sobre isso…Sei que não estava à espera de uma recepção tão calorosa…
Sim, o livro foi calorosamente recebido tanto pelo público leitor como pela critica literária canadiana. As recensões são unânimes em considerar o livro e a escrita como uma lufada de ar fresco no mundo das letras canadianas. O livro foi galardoado com o Prémio da Commonwealth para as Caraíbas & Canadá – First Book e com o W.O. Mitchell City of Calgary Book Prize. Isto depois de um dos contos ter já sido galardoado com o prémio Cannongate para o conto em Edimburgo.
O que é que mudou na sua vida?
O sucesso alterou o contexto pessoal e profissional que me rodeava. Não é que, em si, eu tenha mudado da noite para o dia. A percepção das pessoas é que se transformou, assim como a maneira de se relacionarem comigo. Agora o meu trabalho é considerado com mais atenção, existem mais respeito e admiração, o interesse pela minha pessoa e pela minha escrita acentuou-se marcadamente.
Num ápice saí do anonimato, o que é bom para um jovem escritor que deseja ganhar o pão através da escrita. Por outro lado, este sucesso evaporou o tempo que tinha disponível para escrever, o que é irónico. Existem inúmeras solicitações para outras actividades periféricas à escrita em si – convites para festivais, entrevistas, colóquios, etc…
Referiu que o livro foi premiado. Ao longo da sua vida de escritor ganhou já outros prémios. Como é que entende esta questão dos prémios?
Os prémios são, por um lado, o reconhecimento do valor, qualidade e apreço que os entendidos da literatura atribuem ao meu trabalho literário. É óbvio que os prémios são subjectivos, acabando por reflectir a particularidade dos gostos dos júris. De qualquer forma, é uma honra receber tal reconhecimento. Esse reconhecimento traz uma visibilidade acrescentada ao trabalho do escritor e é mais do que nunca necessário. Quem labuta nas artes sabe bem que a grande maioria dos escritores são quase invisíveis nas sociedades em que vivem.
Por outro lado, o crescimento do número de prémios existentes acaba por ser uma nova forma de marketing, uma forma de chamar a atenção do leitor para novos livros e valores no mundo literário. É pena que não existam mais formas de dar a conhecer ao público leitor a quantidade de talentos literários que continuam no anonimato.
Fale-nos um pouco sobre este seu primeiro livro.
O livro “The Scent of a Lie” é um conjunto de catorze contos entrelaçados que pode ser lido como um romance em fragmentos já que as personagens deambulam de conto para conto. As personagens principais, na minha opinião, acabam por ser as duas aldeias retratadas no livro. O livro acaba por ser um romance de lugar onde a geografia e a entidade social e física, que é uma comunidade, evidencia ter alma própria. No fundo, são as aldeias que emergem como protagonistas principais.
Que tipo de personagens e situações podemos encontrar em “The Scent of a Lie”?
€Após ter caído a um poço, por exemplo, a Camila Penca descobre que tem o dom de detectar mentiras pelo cheiro das palavras proferidas pelos aldeãos. Tal dom desequilibra, de imediato, a dinâmica das relações sociais e pessoais da aldeia na sua existência diária, o que faz com que todos passem a procurar a todo o custo uma solução para preservar o status quo prévio. Temos também o Florindo Ramos que mais facilmente se identifica com o mundo natural do que com a espécie humana, na sua cegueira de autodestruição. Opta então por se casar com uma árvore, facto que terá consequências imprevistas para a aldeia. Temos também o Francisco, pastor que, durante as suas incursões pela serra, descobre pedras que dão à luz outras pedras convencendo-se que encontrou o local onde o mundo nasceu. Essa descoberta terá, mais uma vez, consequências para a aldeia.
Existem muitas mais personagens com as suas idiossincrasias e existências peculiares, mas creio que estes são uma amostra do tipo de personagens contidas em “Scent of a Lie”.
Referiu que as duas aldeias retratadas são, a seu ver, as personagens principais do livro. Que realidades procurou captar através delas?
O livro tem uma variedade imensa de temas. O tema central, todavia, talvez se prenda essencialmente com as questões e experiências de comunidade. O que é uma comunidade? Como surge? É cultivada ou espontânea, consciente ou inconsciente, dinâmica ou fechada? Como respondem os seus intervenientes a acontecimentos que introduzem a mudança, etc… O livro tem preocupações que advêm da criação, preservação e destruição do conceito de comunidade – o que temos em comum, o que nos diferencia e, não obstante as diferenças existentes, onde e como é que procuramos esses pontos de encontro que nos permitem coexistir. Viver e deixar viver, no fundo.
Debruça-se sobre a trajectória, extensão e flexibilidade desses espaços entre os extremos, assim como o alargar dessas fronteiras, desses extremos. Aborda a primeira comunidade que é a família, começando pela coexistência dentro dela, o respeito ou o desrespeito pelas diferenças, a dinâmica dos poderes no seu seio, a tolerância, etc., passando depois pela coexistência dentro da comunidade de amigos ou vizinhos até chegar a círculos cada vez mais largos de comunidade. No dia a dia existem diversas comunidades pelas quais passamos ou pertencemos. Elas sobrepõem-se.
Muito embora o livro se debruce sobre preocupações específicas de duas aldeias portuguesas, abandonadas num tempo passado, essas preocupações continuam, na minha perspectiva, a ser perenes a todas as comunidades. É deste modo que os contos adquirem carácter universal.
Apesar de viver no Canadá há já 19 anos, “The Scent of a Lie” é um retrato quase fiel da sociedade rural portuguesa de meados do séc. XX. Quais os motivos desta sua opção de pensar, ou repensar, um tempo e um país tão distantes?
Eu considero que tive o privilégio de viver a minha meninice numa era de grandes transformações. A transição de uma sociedade agrária e quase medieval, política e socialmente fechada, para uma sociedade industrial e tecnológica. Em termos históricos, essas transições são momentos de grande intensidade e movimento a todos os níveis da experiência humana. O livro nasceu como testemunho de um tempo e de uma sociedade em mutação, uma história que queria ser contada. Penso que é mais fácil avaliar essa realidade depois da distância do tempo por mim percorrida. No meu caso, incluindo a distância geográfica e cultural em que agora me insiro.
Das personagens à própria sequência das histórias, há muito de magia e sobrenatural neste seu livro. Apelidaram a sua escrita de mágico-realista, inclusive. Partilha desta visão?
Por vezes, sim. “The Scent of a Lie” tem, de facto, reminiscências e tonalidades de um certo realismo mágico, mas acredito que tanto este livro como o meu trabalho em geral se movem para além das definições do realismo mágico em si.
Creio que a minha educação católica é uma das principais razões justificativas do facto de a minha escrita possuir uma forte componente mágica. O catolicismo português tem muito de pagão, e o paganismo é uma autêntica porta aberta para o mundo da magia, dos milagres, da vida e da natureza em si.
Qualquer católico cresce lado a lado com toda uma panóplia de histórias fantásticas, mitos, actos miraculosos, e aceita-os sem levantar qualquer entrave. Da concepção imaculada de Maria ao milagre da multiplicação dos peixes, convivemos todos os dias com a ideia de que existem poderes divinos que criam ilimitadamente; o possível mistura-se facilmente com o improvável.
Enquanto escritor creio que trilho o meu caminho nesse sentido de criar ilimitadamente. No papel de criador artístico, cria-se como um deus. Criam-se mundos, pessoas, cenários, atmosferas. A única limitação reside no próprio acto de imaginar. O universo mágico que dizem envolver a minha escrita surge de uma forma tão natural como o saborear azeitonas ou pão de milho.
Nunca pensei em mim, aliás, como um cultivador do estilo do realismo mágico até me terem inserido nessa tradição. Não tinha lido muita coisa dentro desse género até alguns amigos me informarem que as minhas histórias lhes faziam lembrar Isabel Allende e Gabriel Garcia Marquez. Li então alguns livros desses escritores e fiquei um pouco apreensivo. Havia quem já tivesse vivido, ocupado e cultivado esse estilo com grande mestria. De certa forma, estava ali o tipo de escrita que eu sempre quis para mim. Como era um escritor anónimo, foi um pouco desmoralizadora, para mim, a constatação desse facto. Não me senti desencorajado, todavia.
Volvido um ano sobre a publicação de “The Scent of a Lie”, qual é agora o seu sentimento para com o livro?
O livro continua a surpreender-me. Adquiriu vida própria e está a velejar pelo mundo sem necessitar de mim. Surpreende-me a forma como tocou as pessoas. O espelho que o livro é reflecte imagens das quais nunca me tinha apercebido. A pletora de interpretações que contém e que me são comunicadas pelos meus leitores são inúmeras e fascinantes.
Qual foi a recepção da comunidade portuguesa do Canadá a “The Scent of a Lie”?
Presumo que poucas pessoas na comunidade portuguesa no Canadá se tenham apercebido da existência do livro. A minha percepção é que, regra geral, a comunidade não está muita envolvida no mundo das artes canadianas. No entanto, os poucos que se aperceberam da existência do livro receberam-no com verdadeiro carinho, orgulho e sentido de apoio.
A literatura portuguesa tem alguma expressão no Canadá?
É quase inexistente. A nível do público leitor, regra geral, e muito por força do Nobel, só o Saramago é conhecido. O Pessoa é conhecido nos meios mais eruditos. Tanto no Canadá como no resto do mundo a promoção da língua e cultura portuguesas está deveras empobrecida. É um reflexo das prioridades dos nossos líderes em Portugal. Em termos de cultura, ainda continuamos na idade da pedra (e cimento) e daí que seja muito a propósito que existam recursos financeiros para investir em exorbitantes estádios de futebol mas não em áreas de produção cultural. Daí que o Figo seja mais conhecido no Canadá que o Saramago ou o Pessoa.
E para quando a publicação de um livro em português?
Em 2004 está prevista a saída de um livro de poemas em português pela Black Sun, de Lisboa. Quanto à saída de “Scent of a Lie” em português, não sei. Santos da casa não fazem milagres e daí que, salvo raras excepções, o meu sucesso além fronteiras tenha passado despercebido em terras lusas.
Que projectos tem actualmente em mãos?
Estou a escrever um livro de ficção que decorre no Brasil, estou também a traduzir o Nuno Júdice para inglês e a dar os últimos toques e retoques no próximo livro de contos que deverá sair no próximo ano e que se deverá intitular “The Green and Purple Skin of the World”.
E para o futuro?
O sonho é viver da escrita.