Shane Rhodes – dois poemas
Alegação
Shane Rhodes
Eu imagino o meu pai um deus cinzento
que imaginava a sua sede como um músculo que endurecia
e descontraía pela força da vontade era um falhado
alquimista transformando vinho em sangue
o ilusionista que serrou, um por um
a sua família em dois o carpinteiro que desmantelou
a sua casa o bêbado que não conseguia
foder Eu imagino que o meu pai era
o traço um cálice do k-mart a vazar
rum era a navalha da intriga
atravessando a família anestesiada era aquele que extraía lágrimas
da multidão como uma bomba estomacal o homem
que na cave bebeu e vomitou durante dois meses
e depois emergiu aos tropeções para perguntar onde toda a gente
se encontrava ele era o som de palmas
num quarto vazio Imagino o meu pai
semanas a fio vagueando às cegas fruto do vodka destilado
no seu alambique caseiro e forçando os filhos a usar
perfumes distintos para os distinguir
proibindo banhos durante um mês enquanto a banheira
acomodava o Gin Imagino o meu pai
embarcação aos encontrões pela tempestade
da razão morrendo engasgado na gramática
de uma nova oração Imagino meu pai
exigindo que recitássemos cinco gerações
de genealogia antes de entrar em casa
Eu imagino que o meu pai era
Meditações sobre o Quark*
Shane Rhodes
Entrar, como em tempos passados,
com libações e a inundação de sofrimento.
Entrar, muito embora as palavras
descrevam a acção desinteressadamente,
tal como se escreve sobre o prazer.
Há muito a dizer a favor de
há sempre muito a dizer.
Entrar, porque os nossos corpos enchem-nos
de sentido. O som
é demorado e não completamente audível.
Salpicos de relva aquecidos pelo sol.
Casas brancas ao calor,
brilhando trémulamente. Existe uma tristeza
em tudo o que dedilhamos
não porque se tenha desprendido
de um mundo indiviso
mas porque existe um buraco
que o teu corpo enche, completamente.
Entrar, deste modo, às cegas, pesaroso.
Pensavas que o coração compreenderia?
Pobre coração. Foi criado para considerações gerais
enquanto os detalhes nos despedaçam:
da maneira como as bocas dos nossos amantes devoram pão
como as suas mãos se mostram esfoladas de trabalho
como a imaginação ama em retalhos
ainda que o corpo possa só amar o todo.
Nem tudo é simplesmente beleza e o raio do Keats
no século dezanove
a tossir desesperadamente. Entrar, assim,
em movimentos transitórios.
Prestar atenção aos detalhes
engasgados, às peculiaridades do acaso.
Por um lado, estamos de saída,
por outro, acabamos de chegar.
O segredo é o que se comunica no
que se está a comunicar. Movimento
transforma-se em matéria. Muito
nascerá do nada.
*Quark – um dos grupos de partículas subatómicas considerado entre os constituintes essenciais da matéria.
tradução de paulo da costa