Sobre: The Scent of a Lie
SOBRE THE SCENT OF A LIE,
DE PAULO DA COSTA
Vamberto Freitas
paulo da costa, nascido em Angola e criado até à adolescência na Beira Litoral, reside desde 1989 na costa oeste do Canadá, em Alberta e Calgary. O seu livro, The Scent of a Lie, apresenta-nos um caso pouco habitual entre nós: um imigrante a escrever em inglês, quando podia muito bem ter optado pela sua língua natal. Caso semelhante, mas de perfil algo diferente, foi o de Alfred Lewis, na Califórnia (falecido em 1977), autor do romance Home is an Island, e outra ficção e poesia. Numa recente entrevista à página literária (da net) luso-canadiana Satúrnia, Paulo explica as suas razões: “Comecei a escrever em inglês por mera coincidência contextual geográfica. A minha língua de vivência diária era e é o inglês e daí que naturalmente a minha veia criativa assim se expresse. Para mim não fazia sentido escrever em português já que as minhas reacções à vida, ao quotidiano, eram sentidas em inglês e daí o fluir natural da escrita para a língua de vivência diária”. Mais explicações não serão nunca necessárias, e quem vir nisto uma, digamos, “traição”, estará, a meu ver, absolutamente errado. Paulo vem também duma outra tradição literária em que um dos seus mais consequentes mestres do século passado, Fernando Pessoa, quase atirou uma moeda ao ar para decidir em que língua escreveria, se em português ou inglês. Acabou, como se sabe por escrever nas duas, apesar de proclamar que “a minha língua é a minha pátria”. Em arte quer-se, supõe-se, “autenticidade”, como já há muito pedia o ensaísta e crítico norte-americano Lionel Trilling; percebo perfeitamente esta atitude ou chamamento linguístico do autor luso-canadiano.
Com efeito, The Scent of a Lie é uma obra de prodígios, a primeira ficção publicada em livro do autor, e finalista agora de um dos prémios Caribbean and Canada Writer’s Prize, cujo vencedor será anunciado em Maio próximo. Algumas das narrativas aqui compiladas (o autor diz que o livro também pode ser lido como um romance, e creio que sim) já tinham sido publicadas em revistas e antologias, uma das quais (o conto que dá o título ao livro) em Original Sins: The Canongate Prize for New Writing, em Edimburgo, Escócia. Experimentamos na leitura destas páginas uma outra “estranheza”, uma outra originalidade para quem já é leitor de ficção portuguesa e anglo-saxónica: um referencial geográfico, cultural e social totalmente lusitano (as narrativas estão todas situadas na mesma aldeia fictícia algures no norte de Portugal), mas tudo narrado na língua de Shakespeare; uma adjectivação à portuguesa aliada à ligeireza ou plasticidade encantadora da língua inglesa. Alguns dos melhores autores “imigrantes” do mundo anglo-saxónico vêm, nas palavras do ensaísta Pico Iyer, temperando vivamente, através da convivência de tradições linguísticas culturais várias, as novas literaturas sem fronteira, como, por exemplo, Salman Rushdie e Bharati Mukherjee, entre outros. Como que dizer: estas são páginas de coração português em corpo ou forma-outra. Faulkenariano no seu tom e estrutura, os mesmos personagens aparecem e reaparecem nas mais diferentes cenas de conto para conto, em tempos que avançam e recuam. Da primeira narrativa, “Roses for the Dead”, à última, “Ripness”, vamos caminhando por um Portugal primitivo a inícios do século até aos nossos dias. Trata-se de um primitivismo temático que a modernidade literária sempre chamou a si, numa tentativa de desvendar o coração humano, uma vez mais, à Faulkner, em todos os seus conflitos e “instintos”. Numa linguagem marcada por uma espécie de fluência tranquila, reinventa-se nesta escrita toda uma mítica da génese (leia-se “Birthing Stones”) e sobrevivência radicalmente solitária de comunidades indigentemente auto-suficientes e pouco atentas ao resto do mundo. Entre a racionalidade e a superstição, a ignorância e a sabedoria imemorial das gentes, estas narrativas de Paulo da Costa redimem uma existência terra a terra, entre a brutalidade e ternura de mundos hoje irremediavelmente perdidos. Mais do que o realismo mágico anunciado pelos editores na contracapa de The Scent of a Lie, creio tratar-se aqui, passe a expressão, de uma ficção como que ecológica, a natureza como metáfora de Deus e do Diabo, terreno para uma escavação fascinada das mais atávicas crenças de personagens que carregam na sua alma um catolicismo muito temperado e irónico, uma sabedoria-outra de que existe uma realidade de fenómenos invisíveis, mas insistentemente presentes em tudo que nos rodeia – a beleza da vida e o mistério da morte para além de todas as evidências empíricas
“Olive and cork trees – diz o narrador no magistral “The Visible Horizon” – will dot the landscape. We will not fan wind into this image. Instead, we will ignite a blazing sun, tinting the landscape crimson, blurring the horizon lines in the fashion of southern memories. The stunted yellow grass will rest still. We will prompt a raven to shriek and burst the silence. We will place three little shepherds on their backs under a holm oak, name them Lucia, Jacinta and Francisco. For the sake of pastoral, as well as literary coherence, let us surround them with a flock of sheep. The sheep are secondary to the story but may become a minor recurrent symbolic theme. We want subtlety of characterization. We will portray the shepherds as poor, sharing among themselves olives and a loaf of rye bread”.
paulo da costa disse na já referida entrevista que quase todas estas histórias lhe foram contadas no lugar da sua meninice, vêm-lhe do fundo dessa memória que para sempre impressiona e condiciona uma determinada cosmovisão. Por detrás de cada artífice narrativo que o autor convoca em cada um dos seus contos-romance, está essa oralidade e tom de linguagens que encerram em si o espanto perante o milagre da vida vivida e, simultaneamente, a ironia (da improvável) sobrevivência de todos num mundo tão misterioso e de todo precário. Se a fome ronda a sua gente a cada instante e se a esperança depende de visões de súbitas vindas e retiradas do sol milagroso por meninos inocentes, a afirmação da vida contraria em cada linha escrita o cinismo do tempo presente. A chegada da modernidade em The Scent of a Lie é lenta, mas quando se manifesta com todo o fulgor na última narrativa intitulada “Ripness”, o seu personagem já espera a morte, de facto madura e, até, desejada. É a mera passagem a outra dimensão, tendo deixado a semente da bondade e dignidade entre todos.
Se o pós-modernismo literário também implica uma essencial revisitação crítica à história e valores decisivos da humanidade em toda à parte e em todas as suas versões, apelando à memória de inocências perdidas, ler The Scent of a Lie requer a tal suspensão de credulidade como que num banho reparador do corpo e da alma. A brevidade de cada conto está envolta num estilo de linguagem que nunca deixa de ser límpida e certeira, conseguindo ser ao mesmo tempo de caminhada vagarosa e pensada. Andam alguns “heróis” por aqui, todos eles rejeitando a azáfama acéfala de outros tantos. A sensualidade do corpo está nestas páginas associada directamente à sensualidade de todo o resto que rodeia homens e mulheres: campos, árvores e, até, pedras. Ou somos um todo, parece quererem dizer-nos, ou perecemos.
É mais um jogo de espelhos de um outro Portugal – para nós, e, especialmente, para outros leitores de língua inglesa, que o desconheciam totalmente.
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Paulo da Costa, The Scent of a Lie, Victoria, B.C., 2002.